relatos de residência

Residentes
interior.
Relato da artista Edi Patzlaff: O caminho até a Costa Doce. O solo que se redesenha no curso de rios e lagos. Indo de encontro ao estranhamento, essa é a primeira vez que faço algo por mim nos últimos três anos. Nosso percurso foi de ônibus e mesmo levando o dobro do tempo, agradeço porque a poética começou ali, em pessoas comuns, carregadas de histórias e olhos que anseiam oo tempo e a escuta. O ônibus parava pouco a pouco, numa dessas parada entrou uma senhora com um saco de laranjas e um buquê cheios de mudas de alguma planta com cheiro mentolado. Foi quando Francisco, meu filho, disse: mamãe, olha uma laranja no teu pé. A senhora que já havia descido, tinha deixado para nós várias frutas que se moviam conforte o desenho do caminho, sorri recolhendo uma fruta do chão do ônibus e pensei comigo, estamos indo pra o interior. Interior reune uma série de trabalhos autorais germinados na Residência Artística Ressoar que ocorreu em julho de 2025 na cidade de São Lourenço do Sul. Quatro artistas mulheres do Rio Grande do Sul unidas pela mesma raiz, a maternidade e o criar. Uma semana de imersão, conheci pessoas que me marcaram, as vivências indígena, quilombola e campeira ressoam como um fio que se estende em direção ao passado e se prolonga no agora. Todo espaço guarda essa dupla condição: proclamar o vivido e criar o viver. A Residência Ressoar foi para mim um ato político. Mulheres artistas mães criando para além de suas crias. Esse encontro evidencia a urgência de olharmos para a mulher que existe para além da mãe. Tendo como pesquisa o mato e o lugar de onde eu vim, dou corpo e faço germinar dentro da Residência os projetos Assim Nascem os Umbigos, Tu - o sotaque é nossa língua Mãe, O Corpo do Mato e Mão mãe. Nesses diferentes conceitos, poítica, maternidade e memória se encontram. Ana Flor e Fábio, obrigada por abrirem os caminhos. CURADORIA ANA FLOR | FÁBIO ABBUD SÃO LOURENÇO DO SUL / RS INVERNO DE 2025 projeto Assim nascem os umbigos Quando pequena enfiei um grão de feijão no umbigo. Era inicio de ano, janeiro ou fevereiro, colhemos os feijões em um final de semana e no outro com a ajuda de um funil separamos em garrafas pets, era o nosso feijão do ano. Se fechar os olhos consigo lembrar dessa cena que se repetia nas férias da minha infância. A família toda se reunia, era trabalho para os adultos mas para nós irmãs brincadeira, no fim a mãe colocava uma bacia de feijão novo de molho e no dia seguinte a gente acordava com o cheiro de feijão fresquinho pela casa. Numa dessas colheitas, enfiei um feijão no umbigo. Coisa de criança. Minha mãe conta essa história até hoje. Me chamava atenção esse buraco no meio do corpo sem sentido, que por motivos desconhecidos nem minha mãe, nem meu pai podiam me explicar sua utilidade. Lembro que sempre que tocava o umbigo minha mãe dizia para parar, que ele iria ficar largo. Certa vez, presenciei uma vaca parindo, a vaca se chamava Marlene (meu pai dava carinho e nomes comuns para as vacas) foi a primeira vez que vi algo nascer, lembro que escondi meu corpo atrás de uma árvore e olhava só de vez enquando. Quando nasceu saiu uma corda do útero, a vaca lambia seu filhote que minutos depois já estava em pé e ambos conectados por um fio. Assim nascem os umbigos, de um cordão que nos alimenta dentro da barriga e que ao nascer se corta. Nascimento e luto juntos, um nasce o outro morre. Nasce para fora o filho mas também a mãe. O Fio que nos traz a vida rapidamente é cortado. Um ato selvagem mas necessário. Tudo me parece enfim, tão íntimo; o parto, o cordão que se rompe e que caí feito um fio invisível para dar lugar a uma cicatriz bem no meio do nosso corpo, um burraco que cicatriza e se desenha. o umbigo é a nossa primeira cicatriz. O projeto Assim Nascem os umbigos é uma série de fotos documentais, onde fotografo umbigos de pessoas desconhecidas. Nenhum umbigo é igual ao outro, cada cicatriz carrega em si o tempo de uma ferida em formato que círculo que seca, caí e se desenha. Busco assim trazer a reflexão sobre origens, nascimentos e traçar um fio visível entre cor, raça e etnia. Nesse percurso, me autorretrato, repito o gesto da infância agora como mulher mãe, dentro do meu umbigo abrigo um grão de feijão da nossa última colheita. Assista: https://www.instagram.com/reel/DN1NfsIYtAf/ projeto Tu, o sotaque é nossa língua mãe. Tu é palavra da minha infância. Do lugar de onde eu vim, a língua não conjuga as palavras, aprendi as frases metade em português e a outra metade em alemão. Meu mundo se expandiu quando descobri os livros, neles me deliciava descobrindo palavras que nunca tinha sequer ouvido. Ao entrar na Universidade e me deslocar do interior para a Capital senti o quanto o sotaque era tão meu. Ninguém falava como eu. As palavras com o final em e eram lidas com som de i. Os meus erres eram errados. Por um bom tempo mais escutei que falei, essa escuta ativa me apresentou a palavra você referida a mim na terceira pessoa, isso me gerou estranheza. Em uma distância de 100 quilomêtros me sentia uma estrangeira em solo gaúcho. “Você” passou a ser um pronome evoluído de Tu. Começou como uma deferência da realeza de Portugual e conforme a Coroa veio para o Brasil, o “vossa mercê” ou “sua graça” (“vossa”, do pronome “vos”, e “mercê, que significa “graça”) se popularizou para se referir a pessoas que não aceitariam ser chamadas por “tu”. Esse projeto germina dentro da Residência Ressoar, ao me deslocar de Porto Alegre a caminho da cidade de São Lourenço do Sul senti que estava indo para o interior, atraves da fala dos passageiros do ônibus, da escuta ativa entre as vivências Quilombola, indígena e a rural, todas utilizavam a palavra Tu se referindo ao outro. Em uma distância de 200 quilomêtros não me sentia uma estrangeira em solo gaúcho. A Costa Doce de certa forma me abraçou. O projeto Tu, o sotaque é nossa língua mãe; busca escutar os sotaques do Brasil. Questiona as aproximações e estranhamentos sobre a fala. Ocupo a rua com a câmera e ouvidos atentos ao lado da minha amiga também fotógrafa Sara Tavares, pelas ruas da Capital de Porto Alegre mapeamos através da escuta os sotaques que atravessam, se encontram, se estranham, se bifurcam. Escutar essas dinâmicas de sotaques é abraçar o lugar onde essa pessoa que fala nasceu, cresceu, o sotaque é a nossa língua mãe. Assista: https://youtu.be/W3V8uInVAaw * a proposta é tornar o projeto Tu, uma produção a longo prazo. Atraves do meu deslocamento físico, ouvir as pessoas e mapear os sotaques como linha de pesquisa em diferentes cantos do Brasil. Apresento aqui uma prévia da projeto. projeto O corpo do mato O corpo nasce na linha. O mato gesta o tempo até virar pó, entre vida e morte é matéria latente em minha linha de pesquisa como artista. O mato como destino, em abundância ou na paisagem que não o abraça. Tramo o corpo do mato como ato político de existir. Com os matos colhidos na Aldeia Guarani TeKoa Tavaí tramo sobre o chão uma espécie de raiz, demarcando assim os povos originários do Brasil. Busco nesse projeto regenerar o solo o demarcando como indígena. o corpo do mato mato como fuga mato como nutrir mato ancestral mata viva linha de encontro entre Terra e água linha interrompida mato demarcado mato como regeneração Assista: https://www.youtube.com/watch?v=q5fqugU-gHc projeto Mão Mãe. Olho para o movimento dos dedos sobre o teclado, eles inscrevem um começo: a mão no ato de pensar, caminhar lentamente, cada minímo centrímetro levando artérias, ossos, pele, objetos, pensamentos. Penso no ritmo das mãos sobre o cuidado, mãos que vestem o filho, mãos que pedem colo, mãos de rezadeira, mãos de costureira, mãos de quem planta, mãos de quem alimenta. De mão em mão há sempre uma mãe. Mão Mãe é uma colagem feita a partir de matos secos, colhidos dentro das vivências Guarani, Quilombola e Pecuária durante a Residência Ressoar. Sobre o papel em grande formato desenho a mão do meu filho e a mão da mãe da minha mãe. Utilizo como tintura fragmentos da Terra de São Lourenço do Sul.
Entre Cidade e Campo: Práticas de Existência
Relato da artista Giordana Winckler: Ancestralidade e território atravessam minhas insistências de trabalho. Pensar a maternidade em relação à Costa Doce me pareceu um terreno fértil para a produção de imagens. Minha intenção inicial era refletir poeticamente sobre como a maternidade é afetada pela presença das águas em seu entorno, deixando que essa experiência provocasse imagens. No entanto, como costuma acontecer na prática artística, intensificada pela maternidade, somos levadas por desvios. A experiência no Pampa, morando alguns dias no campo, me levou a fazer perguntas e perceber que elas não surgem em tempo real e orgânico. Há um tempo à parte para assimilar o encontro com a região, a presença de suas pessoas, de uma geografia própria, de um convívio possível através de uma residência com outras artistas e suas famílias, os debates e diálogos em nossos encontros. Vivendo no espaço urbano, sou constantemente provocada pela ausência da linha do horizonte. Com a ascensão de empreendimentos cada vez mais altos em Porto Alegre, como em tantas outras cidades brasileiras, não apenas perdi a percepção da paisagem, mas também o acesso à luz natural em abundância dentro de casa, comprimida entre paredões que obscurecem o entorno e achatam o tempo. Vivo em uma cidade onde o deleite de observar a paisagem tornou-se privilégio de uma minoria que habita os andares mais altos, ou daquelas cujas janelas se voltam para os raros espaços vazios urbanos. Essa arquitetura da exclusão, que estratifica o espaço e hierarquiza os olhares, não é apenas um produto do capitalismo acelerado, mas expressão de uma lógica patriarcal de organização do mundo, um sistema que historicamente exclui mulheres do direito ao tempo, ao deslocamento, ao espaço e à contemplação.
Abrindo espaço para as raízes das plantas dos pés – cartografia do percurso
Relato da artista Lu Goulart: Trago aqui um relato, uma cartografia da memória em terra dos pampas na Costa Doce, onde a ancestralidade pulsa em diferentes contextos, mas se encontra num mesmo ponto de partida. Um projeto sensível, idealizado por Ana Flor e Fábio Abbud, ocorrido entre São Lourenço do Sul e Cristal (RS). A proposta era que mães artistas pudessem levar filhos e rede de apoio, permitindo dedicação plena às vivências, sem a cobrança de criar. A intenção era que as experiências reverberassem em nossas pesquisas e práticas artísticas. Estar na residência ao lado de meu filho, um jovem negro, foi mais que um gesto afetivo — foi político. Sua presença em um espaço de criação e escuta ressignificou o pertencimento. Compartilhar esse tempo e território foi um ato de reparação, afirmando que famílias negras também constroem os modos de existir e criar na arte contemporânea. Dividir o cotidiano com outras mães artistas, seus saberes, sotaques e formas de maternar foi um aprendizado imensurável. Ser a única mulher negra na residência tornou ainda mais nítidas as camadas de desigualdade que atravessam nossos corpos. Meu silêncio não era ausência de fala, era herança. Um silêncio aprendido, que tantas vezes parece proteção, mas que, como nos lembra Audre Lorde, "não nos protege". Percebi que o motivo do meu calar era mais profundo: não era desinteresse, era exaustão. Mulheres negras, como eu, tantas vezes não têm tempo nem espaço para nomear suas dores. Mas ali, mesmo calada, fui tocada. A escuta também foi presença. E talvez o mais transformador tenha sido compreender por que me calei. Vivência Guarani – Aldeia Tekoá Tavaí, Cristal Chegamos à aldeia Tekoá Tavaí com acolhimento. Alguns indígenas estavam em torno do fogo — ali já se delineava um tempo outro, espiralar, diferente do nosso. Não houve anúncio solene, mas um fluxo natural de chegada. Os modos de viver e a performance realizada se entrelaçaram como tradição viva. As mulheres cuidavam de seus filhos e dos que não eram seus. Crianças amparavam umas às outras com naturalidade. Um cuidado comunitário, ancestral. Os homens entoavam cantos, e as mulheres dançavam com beleza e leveza. As anciãs permaneceram sentadas; uma delas, com seu cachimbo, personificava a ancestralidade. Seu José se apresentou no seu tempo, entre guarani e português. Seu tom sereno revelava a sabedoria de quem vive o tempo como parte da vida. As obras das mulheres estavam expostas no chão, como uma galeria a céu aberto. Me perguntei que espaços essas obras poderiam ocupar nas grandes galerias do país. A beleza daquelas criações dialogava com a terra, os corpos e a memória viva. A estética do território me atravessou: a casa sagrada de argila, o barro, os cupinzeiros — quantas formas tem um lar? Murundus (bantu) e tucuri (tupi-guarani): moradas, úteros da terra. E a presença do porongo — recipiente, sementeira, corpo-mãe — acompanhava cada momento. Vivência Campeira – Pecuária Garupa, Cristal Fomos recebidas com afeto pelo grupo de mães de Cristal e por Vera Borges, anfitriã. Um espaço de partilha, cuidado e resistência, onde o cinquentenário Clube de Mães mantém tradições vivas como crochê, tricô e outras técnicas. Vera emocionou com suas palavras: "Para mim, a maior artista é a natureza. Eu gosto de portas e janelas. Toda vez que abro, vejo uma paisagem diferente." Sua casa é uma obra viva de memórias. Conhecemos Elsa Ortiz, mulher forte e inspiradora. Criou filhas com apoio da terra e da pesca. Retornou aos estudos e, após a morte do pai, assumiu seu táxi — um gesto de empoderamento em tempos difíceis. Hoje, é referência em artesanato e resistência feminina. Cada mulher ali carregava a força de um legado vivo. Vivência Quilombola – Quilombo Maria Lina, São Lourenço do Sul Adentrar o Quilombo Maria Lina foi como chegar em casa. Recebidas por Vera Lúcia de Souza, descendente de Manoel Padeiro — o Zumbi dos Pampas —, sentimos a força de uma linhagem de rezadeiras, benzedeiras e curandeiras. Dona Vera, mestra griô, trançava palha e história com as mãos. Ao mostrar seu artesanato, disse: “Esses artesanatos eu fiz no período de luto. Eu perdi uma filha. Ela foi assassinada.” Uma dor que se transforma em arte. Sua matéria-prima é a tiririca — fibra resistente, encontrada em banhados e encostas, metáfora dos corpos marginalizados. Assim como ela, que brota onde menos se espera, Dona Vera tece resistência. Sua casa é quilombo, território de saberes e continuidade. Ali, compreendi ainda mais a potência da minha pesquisa sobre ancestralidade feminina negra. Formação Poética – Oficina com Catiuscia Dotto No quinto dia, participamos de uma oficina com a artista Catiuscia Dotto, que compartilhou sua pesquisa visual "Desfloración", abordando intimidades femininas. Ao experimentar moldes do corpo, criei uma boca costurada. Silêncio, mais uma vez. Um silêncio que também é gesto político, uma fala interrompida. Foi ali que minha poética encontrou outro caminho. Reverberações Participar da residência Ressoar, minha primeira, fortaleceu meu trabalho como artista-gestora-pesquisadora. Foi um marco de escuta, afeto e articulação. Ressoei com as memórias dos territórios e encontrei eco nas práticas das mulheres que conheci. Essa experiência se conecta profundamente à arte contemporânea, ao romper com os centros hegemônicos, valorizar as poéticas periféricas e visibilizar corpos e saberes silenciados. Pensar um projeto como este é, antes de tudo, um ato de descolonização: recusar a pressa, acolher os corpos com seus filhos e suas histórias, fazer da escuta um gesto de criação. Ressoar é romper com a lógica da produtividade para cultivar presenças inteiras, onde arte e vida se entrelaçam como raiz em terra fértil.” Ressoar artistas-mães foi um gesto político e amoroso, um exercício coletivo de futuros. Agradeço a Ana Flor e Fábio Abbud por tornarem possível esse espaço. Este breve relato está em aberto — seguirá reverberando na escrita, na arte e na vida. Residência Artística Ressoar artistas-mães é um projeto de Ana Flor e Fábio Abbud, realizado com recurso da PNAB – Ministério da Cultura, selecionado no Edital SEDAC RS n° 27/2024.






























































